INSTITUTO CULTURAL PADRE JOSIMO
PROGRAMA REVISTA DE RÁDIO
Produção e apresentação: Frei João Osmar
627º programa: 21 de agosto de 2025:
1- Resenha: No programa de hoje vamos tratar sobre a importância e urgência da regulamentação das plataformas digitais no Brasil para proteção de crianças e adolescentes em nosso país, que atualmente estão expostos a todo o tipo de assédio e de crimes. Sigo aqui material publicado no site do Jornal Brasil de Fato do dia 20 de agosto. A seguir coloco o link para quem quiser ter acesso ao material completo. A infância sequestrada pelos algoritmos: por que o Brasil precisa regular já as plataformas digitais – Brasil de Fato
A infância sequestrada pelos algoritmos: por que o Brasil precisa regular já as plataformas digitais
A denúncia realizada pelo influenciador Felipe Brassanim Pereira, o Felca, ao expor a exploração de crianças e adolescentes em conteúdos monetizados pelas grandes plataformas digitais, tornou-se um marco no debate público. O vídeo, com dezenas de milhões de visualizações, não apenas expôs a vulnerabilidade de menores em um ambiente desprotegido, mas também evidenciou a cumplicidade sistêmica das plataformas que lucram com a monetização desses conteúdos. A prisão preventiva de um dos envolvidos, o influenciador Hytalo Santos, reforça a dimensão da gravidade, mas não resolve a questão central: a máquina algorítmica que privilegia engajamento e lucro acima da dignidade humana continua operando sem regulação democrática. Este episódio, que agora impulsiona a votação de um projeto de lei sobre proteção digital de crianças e adolescentes, deve ser interpretado como mais do que um escândalo pontual. Ele é um sintoma de uma sociedade mediada por algoritmos que priorizam a financeirização da atenção em detrimento do cuidado, da ética e dos direitos humanos.
Em meus livros, como Maioria Minorizada (2020) e Comunicação em Disputa (2025), tenho insistido que a comunicação deve ser tratada como um direito público essencial, e não como mera mercadoria submetida às leis do mercado. Quando a comunicação é reduzida a um negócio, as desigualdades estruturais da sociedade brasileira — especialmente as raciais e territoriais — são reproduzidas e intensificadas. Esse caso mostra de forma exemplar que não se trata apenas de liberdade de expressão, mas de proteção da dignidade de crianças e adolescentes. A suposta neutralidade das plataformas digitais, frequentemente evocada por seus executivos, nada mais é do que um álibi para a manutenção de um modelo de negócios extrativista, baseado na captura e monetização de dados e atenções.
O Brasil foi pioneiro com a aprovação do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), considerado uma espécie de “Constituição da Internet”. Esse marco estabelece princípios como a neutralidade da rede, a privacidade e a liberdade de expressão como direitos fundamentais. Entretanto, a realidade atual mostra que o Marco Civil, embora avançado, não é suficiente diante da sofisticação das plataformas digitais e de sua lógica algorítmica. O que se vê hoje é que a neutralidade técnica dos provedores de internet pouco se aplica às plataformas, que atuam como curadoras e distribuidoras de conteúdo por meio de algoritmos opacos e orientados ao lucro. Assim, a promessa do Marco Civil de garantir uma rede democrática esbarra na falta de regulação específica para empresas que não apenas hospedam conteúdos, mas definem o que circula, quem é visto e o que é invisibilizado.
O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) é uma das experiências mais ricas de governança multissetorial no mundo, reunindo governo, empresas, sociedade civil e academia para discutir políticas de internet. Contudo, seu papel precisa ser fortalecido. Num cenário em que big techs concentram poder sem precedentes, é fundamental dotar o CGI de maiores instrumentos de regulação, fiscalização e transparência. Hoje, sua atuação é mais normativa e orientadora do que coercitiva. O desafio é transformá-lo em uma instância que efetivamente possa limitar abusos e cobrar das plataformas transparência algorítmica, responsabilidade social e respeito às legislações nacionais. Se o Brasil já foi referência ao criar o Marco Civil, pode novamente assumir protagonismo ao ampliar o papel do CGI.br e propor formas inovadoras de regulação democrática da internet.
A obra Algoritmos da Opressão, da pesquisadora Safiya Umoja Noble, é central para compreender o que está em jogo. Ao analisar o funcionamento dos mecanismos de busca, Noble mostra que os algoritmos não são neutros, mas sim reprodutores e amplificadores de desigualdades históricas, em especial de raça e gênero. Quando uma jovem negra buscava por termos relacionados a sua identidade no Google, encontrava resultados sexualizados, violentos e estigmatizantes. Isso não acontecia por acaso, mas porque os algoritmos foram programados para privilegiar cliques, ignorando os efeitos sociais e simbólicos. Se isso já é devastador para jovens em contextos de maior proteção social, o que dizer das crianças das periferias brasileiras, que muitas vezes encontram nas telas o único espaço de lazer, sociabilidade e aprendizado? Nesse caso, os algoritmos não apenas reproduzem, mas também agravam a exclusão social e racial, moldando imaginários colonizados e precarizados.
Há um aspecto quase sempre invisibilizado nos debates institucionais: o impacto desigual das plataformas sobre crianças e adolescentes pobres, negros e periféricos. Esses jovens vivem em territórios marcados pela ausência de políticas públicas, pela violência policial e pela precariedade da educação e do lazer. Não raro, o celular se torna a principal janela para o mundo. Mas o que esses algoritmos oferecem a eles? Conteúdos que reforçam estereótipos raciais e territoriais; promessas de enriquecimento rápido e fama digital como “única saída”; modelos de masculinidade violenta e sexualização precoce das meninas; normalização da violência como espetáculo de consumo. Esses elementos configuram uma verdadeira pedagogia algorítmica da exclusão, que forma subjetividades conformadas à lógica do mercado e às hierarquias raciais.
O filósofo francês Louis Althusser falava em “aparelhos ideológicos de Estado” para se referir a instituições como a escola, a mídia e a igreja, que moldam subjetividades e legitimam a ordem social. Hoje, poderíamos falar em aparelhos ideológicos algorítmicos, nos quais plataformas digitais desempenham um papel ainda mais penetrante e invisível. Estamos formando uma geração cuja memória, imaginação e linguagem são mediadas por algoritmos que não priorizam a diversidade cultural ou a equidade, mas sim o que gera lucro imediato. O risco é a consolidação de uma sociedade de sujeitos desidentificados, incapazes de reconhecer-se como parte de uma coletividade crítica e transformadora.
A regulação das plataformas digitais, portanto, não é apenas uma medida técnica, mas uma escolha civilizatória. Trata-se de decidir se queremos uma sociedade em que a infância e a adolescência sejam vistas como sujeitos de direitos ou como meros insumos para a indústria da atenção. Nesse sentido, algumas medidas são urgentes: transparência algorítmica, responsabilização social, educação midiática, fortalecimento do CGI.br e políticas de reparação que priorizem territórios historicamente excluídos. O caso exposto recentemente é mais um chamado à ação. Se não enfrentarmos a lógica de que os algoritmos são neutros e inevitáveis, corremos o risco de consolidar uma distopia algorítmica, onde crianças pobres e negras serão as principais vítimas. Mas há também uma utopia possível: a de construir uma sociedade digital regulada democraticamente, na qual comunicação seja um direito, e não um negócio. Essa utopia depende de coragem política, pressão social e de uma visão de futuro que não se submeta à colonização das plataformas. Como tenho defendido em minha trajetória acadêmica e militante, a comunicação é um campo de disputa. E, nesse campo, decidir o que circula, o que é invisibilizado e como se forma o imaginário coletivo é decidir o próprio futuro de nossa democracia.
2-Testemunho/entrevista: Hoje vamos continuar a ouvir o testemunho de Anne Marie Crossville, uma jovem idealista com pouco mais de 70 anos, que nasceu em uma localidade rural na região da Normandia, na França, filha de agricultores. Fez seus estudos iniciais e até o 3º grau na França, onde chegou a atuar como professora. Porém, aos 23 anos foi para o México, como jovem internacionalista para atuar nas periferias urbanas e com os migrantes. Lá conheceu Dom Oscar Romero que a convidou para ir trabalhar em apoio às Comunidades de Base em El Salvador. Quando chegou em El Salvador, dom Oscar Romero já havia sido assassinado a mando do exército de seu país. Anne se integrou às forças guerrilheiras que enfrentavam a ditadura naquele país, onde teve rica vivência e muito boa convivência com os combatentes. Forçada a voltar para a França, em pouco tempo veio para o Brasil, onde radicou-se há mais de trinta anos, numa vila popular na cidade de Cachoeirinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre, onde dedicou-se a um trabalho social com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Na fala de hoje ela nos conta sobre sua vida como jovem internacionalista na América Central e no Brasil.
3- Música: Pelos Caminhos da América, com Zé Vicente;
4- Fotos da internet: Acervo pessoal de Anne Marie e Rede Jesuíta: