Casas de matriz africana em Novo Hamburgo e São Leopoldo superam danos, acolhem moradores e denunciam racismo religioso
Fabiana Reinholz / Marcelo Ferreira

Na Região Metropolitana de Porto Alegre, em cidades como Novo Hamburgo e São Leopoldo, terreiros de matriz africana resistem e acolhem comunidades mesmo diante de desastres climáticos. O Centro Africano Nosso Senhor dos Passos Reino de Oyá, de Mãe Eni de Oya, e o Ilê Axé Oyawoyê, de Mãe Isabel de Iansã, foram afetados pela enchente de 2024, mas mantiveram suas práticas religiosas e ações sociais. Tornaram-se refúgios mostrando como tradição, solidariedade e organização comunitária enfrentam não apenas as águas, mas também o preconceito e a ausência de políticas públicas.
Segundo o Censo 2022, o Rio Grande do Sul concentra mais de 300 mil pessoas autodeclaradas de religiões de matriz africana, o equivalente a 3,2% da população. O que coloca o estado como o que possui maior número de praticantes dessas tradições no país. Em Novo Hamburgo e São Leopoldo, se declaram adeptos da Umbanda e do Candomblé 1% e 2,73% da população, respectivamente.
Reino de Oyá: 42 anos de história e acolhimento
Fundado por Mãe Eni de Oya no bairro Santo Afonso, em Novo Hamburgo, o Reino de Oyá completa 42 anos de atuação comunitária. A trajetória da líder religiosa e do terreiro se confunde com a formação do bairro, marcado pela precariedade. Nascida em Paverama, saiu do interior com a família e se estabeleceu na cidade. Quando casou, foi morar no bairro que se formava.

“Quando viemos pra cá não tinha rua, não tinha luz, não tinha nada”, recorda. O marido, que tinha um caminhão, chegou a amarrar árvores e puxá-las para abrir as primeiras vias do bairro. “Água a gente pegava duas quadras pra lá e luz vinha dos fios que pegava de um senhor lá em cima”, conta.
O ingresso de Eni na religião ocorreu por influência do marido, mas a experiência com a espiritualidade antecedeu sua iniciação. “A mãe Iemanjá chegou em casa. Eu não era da religião e ela veio sozinha. Eu não queria, fui pra Igreja dos crentes, mas lá ela quase baixou. Aí voltei e segui a religião.” Depois de anos na Umbanda, ela migrou para a Nação: “Sou filha de Iansã.”
Enchente deixou 18 dias de alagamento
O terreiro ficou submerso por 18 dias na enchente de 2024. “A água foi até o ventilador”, descreve. O assoalho perdeu-se, mas imagens e caboclos permaneceram intactos. Apesar do abandono de religiões de matriz africana em políticas de emergência relatadas em outros pontos do estado, Eni conta que recebeu auxílio federal — R$ 5 mil para a casa e R$ 5 mil para o terreiro — que permitiu a recuperação parcial.
A rotina inclui trabalhos espirituais e benzeduras que, após a enchente, cresceram sobretudo entre mulheres. “As pessoas ficaram muito depressivas, parecia que a alma saiu do corpo”, diz Ana Paula Messias Brum, filha de santo há 35 anos. Ela chama a atenção para o fato das mulher serem as mais atingidas: “As mulheres vieram buscar aconchego, palavra amiga, búzios, banho de ervas.” O terreiro também oferece rodas de leitura e atividades de apoio emocional.
Papel social e vínculos comunitários
Brum conta que a casa sempre teve forte atuação social. “Fazíamos sopão, ajudávamos pessoas na friagem, arrecadávamos roupas. Quantos meninos não tiramos da rua com o hip-hop que eles dançavam na garagem da mãe?”, lembra. O respeito do bairro, segundo Eni, vem dessa história de solidariedade: “Em tantos anos, ninguém nunca incomodou nós.”
Eduardo Tamborero, filho de Eni, é o tamboreiro do terreiro e reforça que o local cresceu junto à cooperativa habitacional da região, fundada com ajuda de seus pais. A comunidade recorria à família em emergências. “Quando não tinha Samu, quem precisava ir ao hospital ia com o pai. Baleado, grávida, quem fosse ia lá em casa pedir ajuda.”
Ele recorda que, por isso, a vizinhança reconheceu o terreiro desde cedo. “Era uma comunidade muito pobre. No batuque, quando sobrava bolo e canjica, o pessoal fazia fila com potinho.”
Esse espírito de união carrega a força da resistência quilombola. Para Tamborero, o grande número de praticantes de matriz africana no estado se explica por esse tipo de união, vista também na formação de quilombos, clubes sociais negros e tradições preservadas. “Como éramos minoria, tivemos que nos juntar para resistir.”
Intolerância religiosa e ausência do poder público
Embora o Reino de Oyá não tenha sofrido perseguição religiosa com ataques diretos, Tamborero destaca que o preconceito em Novo Hamburgo é cotidiano. Durante uma candidatura, ouviu que sua religiosidade era impeditivo para receber votos. Lembra de ouvir: “Tu é batuqueiro, não voto em ti”. Para ele, isso mostra que muitas vezes a violência não vem com pedra, “mas está no íntimo das pessoas”.
Ele afirma que outros terreiros da região vivem situações graves. “Conheço terreiro que já foi fechado pela polícia. Tem terreiro apedrejado sempre”, denuncia, citando o caso de uma amiga com terreiro em outro bairro que passa pela situação com frequência.

Segundo ele, falta estrutura pública para práticas religiosas da matriz africana na cidade. “Novo Hamburgo não tem lugar pra fazer oferenda. Não há discussão séria sobre isso na Câmara de Vereadores.” O contraste com São Leopoldo é evidente: lá existe espaço sagrado para oferendas, atividades oficiais e o Dia da Umbanda.
Tamborero critica o desequilíbrio no apoio cultural. “O gospel tá aí. Mas terreiro também tem canto bonito. Podia se apresentar, mas não é contratado por preconceito e racismo.”
Falta de organização coletiva e medo da exposição
Entre 2012 e 2014, pesquisa em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social identificou cerca de 150 terreiros em Novo Hamburgo, considerando casas estruturadas, congás domésticos e benzedeiras. Para Tamborero, o número deve ser ainda maior hoje, mas a falta de articulação entre casas e o medo do preconceito dificultam a organização.
“São Leopoldo tem associação, tem função pós. Aqui em Novo Hamburgo não tem nada. Tentamos seminários, encontros, mas o pessoal tem medo de se expor pelo preconceito que sofrem. Aqui tu vai buscar um trabalho e não te dão porque é do batuque.”
Mãe Eni concorda: “Talvez tenha mais agora, olha o tempo que já passou. Em Novo Hamburgo os terreiros são muito abertos, mas não tem aquela união como em São Leopoldo.”
Ilê Axé Oyawoyê: história, acolhimento e reconstrução
Mãe Isabel (Yalorixá Isabel de Iansã) iniciou sua caminhada no Candomblé em Porto Alegre, quando o pai se aproximou de debates sobre população negra e o centenário da abolição. A família conheceu um terreiro em Florianópolis, onde ela ingressou motivada também pela doença do filho. “Fiquei naquele terreiro por quase 15 anos”, recorda. Passou por casas em Curitiba e Canoas até que, por exigência do orixá, abriu sua própria casa, contrariando seu desejo inicial.

Em Canoas, realizou o primeiro candomblé e iniciou filhos de santo, mas uma denúncia de vizinhos a levou a buscar outro local. A mudança para o imóvel abandonado no bairro Rio dos Sinos, em São Leopoldo, ocorreu após insistência de um filho de santo. A comunidade reformou o espaço, que se tornou o Ilê Axé Oyawoyê. “A casa virou referência para profissionais do sexo e moradores de rua”, conta.
Do terreiro surgiram ações solidárias como o varal comunitário, distribuição de marmitas e apoio cotidiano. “As pessoas doam o que é lixo pra elas, mas não serve pro outro, não é porque moram na rua que são lixo. A gente não dá dinheiro, mas dá um feijão, um arroz, um ovo”, diz, destacando a importância de tratar quem necessita de ajuda com respeito.
A Yalorixá recorda da infância em Pelotas, filha de mãe solo. “Passamos muita fome. A fome é algo que tu não esquece.” Essa memória fundamenta o trabalho solidário.
O momento da enchente, o resgate e a reconstrução
Quando a água subiu, Isabel ergueu alguns santos sobre mesas. Os assentamentos mais novos ficaram no chão. A filha grávida demorou a sair; as ondas levantadas por caminhonetes agravavam a situação. A decisão final veio da nora: “Vamos sair agora.” A água já chegava à cintura. Foram resgatadas de barco e levadas à BR; parte da família ficou com amigos e Isabel com um filho de santo. “Perdi meu carro. Minha filha perdeu o dela.”

A água demorou quase 25 dias para baixar. “Tudo ficou de molho.” Muitos objetos sagrados apodreceram ou quebraram. Filhos de santo ajudaram na limpeza. “O que dava pra lavar, a gente lavou. Com sabão. Com quiboa.” Alguns tentaram impedi-la de voltar até o fim da limpeza, mas ela insistiu: “Eu preciso enfrentar.” Encontrou parte dos ibás preservada e refez fundamentos. “Somente os porcos abandonam o barco.”
Os custos foram altos e o auxílio não bastou. Elementos vindos da África tiveram de ser repostos. “Mas conseguimos montar o axé de volta.” A volta foi dura: “Não tinha um pássaro, não tinha um vento.” A casa foi lavada e energizada durante dez dias.
“Retornamos reestruturando tudo. Permanecer aqui é só para os fortes”, avalia, revelando que após a enchente houve uma redução de frequentadores do terreiro. Para ela, nenhuma religião está protegida do mundo material. “Aconteceu no Axé, na igreja católica, na evangélica.”
Afoxé, atividades para crianças e biblioteca
A casa mantém grupo de Afoxé com instrumentos tradicionais e promove o Ilê na Rua, com atividades físicas, educativas e culturais. Tinha uma biblioteca afrocentrada, que foi destruída pela enchente. “A nossa biblioteca fazia as crianças negras se enxergarem como lindas que são.”
Havia também um projeto de cuidado estético voltado às crianças. “As meninas penteiam, trançam, para eles se enxergarem como são.” Para Isabel, a pedagogia para crianças negras exige outra abordagem. “O educador tem que se desdobrar para o diferente.”
Mesmo com a ideia de levar parte das atividades para um sítio, garante manter o espaço urbano ativo como ponto de acolhimento e orientação. “A gente atende essas situações de conversa, de trazer perspectiva, mostrar que existem maneiras de melhorar.”
Portas abertas para todos
Após a enchente, ela percebeu o desaparecimento de mulheres trans e profissionais do sexo que frequentavam o bairro e eram atendidas pelos projetos do terreiro. “Nossa clientela diminuiu muito. Para onde foram essas pessoas?” Espaços antes ocupados por elas deixaram de existir. “Hoje já não tem mais aquele número de mulheres.”
Mãe Isabel ressalta que o terreiro acolhe a todos que precisam de ajuda. “Quando tocamos um tambor, estamos invocando nossa ancestralidade. É em nome dela que acolhemos quem bate no portão pedindo água, comida, um abraço.” Segundo ela, o terreiro se torna “psicólogo, psiquiatra, médico da comunidade”. A horta curativa é exemplo disso: “É uma forma de acolher a comunidade. Tirar eles da medicação.”

Racismo religioso estrutural e silenciado
Um levantamento do Conselho de Povos Tradicionais de Matriz Africana de São Leopoldo registou, em 2018, a existência de 412 locais de prática da religiosidade. Apesar da organização das casas na cidade, Mãe Isabel afirma que a região ainda é marcada pela colonização dos povos de origem alemã e italiana, e a cidade tem forte presença evangélica. Conta que já enfrentou conflitos por vizinhos tentando interferir, mesmo realizando a maior parte das atividades durante o dia, como são os rituais do Candomblé.
Para ela, há um racismo religioso estrutural e silenciado. Como exemplo, lembra do caso de uma mãe de santo de Alvorada, impedida de tocar dentro da própria casa por um vizinho policial evangélico. “Ela está ameaçada. É sobre isso. Vivemos uma justiça embranquecida, que não se posiciona.”
Ela critica discursos que associam o Candomblé ao mal. “Eu desconheço o diabo. Ele não faz parte da minha cultura.” O respeito começa em casa: um de seus filhos é evangélico e o convívio tem harmonia. Ela, inclusive, frequentou igrejas quando convidada. “Vai da liderança. Quem está lá na frente decide o que quer para os seus seguidores. Eu quero sempre o melhor para todos. É sobre isso: respeito.”
Esta matéria é parte das ações do Projeto “Igualdade e Cultura Negra: Vozes e Territórios”, executado em parceria com o Ministério da Igualdade Racial. O apoio se dá conforme o Termo de Fomento nº 973281, correspondente à Meta 6 (Produção de Matérias escritas para mídias digitais).