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VOZES E TERRITÓRIOS | Festival Yabás reafirma resistência pós-enchente e exalta força das mulheres na matriz africana

Encontro em São Leopoldo (RS) marca reconstrução dos terreiros como espaços de espiritualidade e acolhimento

 

Ilê Axé Oyawoyê, em São Leopoldo (RS), foi palco de encontro entre povo de axé, artistas, intelectuais, lideranças e moradores / Crédito: Jorge Leão

O som dos tambores, atabaques, agogôs e xequerês vibrou no Ilê Axé Oyawoyê, em São Leopoldo (RS), anunciando que a força do povo de terreiro segue de pé no Rio Grande do Sul após a enchente histórica de 2024. Ao redor de uma jabuticabeira, o toque para Exu abriu o 2º Festival Yabás, neste sábado (22). Com o tema “Resiliência Cultural”, o evento reuniu filhos e filhas de santo, yalorixás, babalorixás, artistas, intelectuais, lideranças e moradores, em um chamado para a reconstrução coletiva e a celebração de fé, arte e resistência das tradições africanas no estado.

A segunda edição marcou não apenas a volta do festival, interrompido em 2024 pelos eventos climáticos, mas a reafirmação pública de um território negro que insiste em existir diante do racismo ambiental, religioso e estrutural. “O Festival Yabás chega à segunda edição após um ano muito difícil”, contou Mãe Isabel Cristina Passos, chefe de cozinha, mulher negra e yalorixá do espaço. “O primeiro fizemos em 2023. Depois, tudo parou. Agora retomamos porque nosso povo é resiliente.”

As Yabás — orixás femininas como Iemanjá, Oxum, Iansã, Obá e Ewa — foram convocadas como símbolo da força criadora e da luta das mulheres negras. “Todo orixá feminino é uma Yabá: mãe, senhora, deusa”, explicou Mãe Isabel. As diferentes atividades do festival, segundo ela, estão conectadas pela centralidade do letramento racial.

“Para que a gente possa mudar os conceitos da nossa comunidade, do nosso entorno, a gente precisa ter esse letramento. Levar para dentro da escola, falar sobre racismo, sobre cor de pele, que isso aqui nada mais é do que uma pele. Somos iguais perante Deus”, disse, destacando que a transformação começa pelas crianças, que “são o futuro transformador”.

 

Resistência dos terreiros devastados

Mãe Isabel Cristina Passos ao lado de Pai Dejair de Ogum / Jorge Leão

O Ilê Axé Oyawoyê, que recebeu o festival, ainda carrega marcas da enchente. A água chegou a quase dois metros, destruindo salas, objetos sagrados, roupas rituais e deixando o espaço sem água, luz e alimentos. Uma cena que se repetiu em terreiros de cidades de norte a sul do estado.

Segundo dados do Ministério da Igualdade Racial, cerca de 1,3 mil comunidades tradicionais de matriz africana foram afetadas pelo desastre. Muitas ficaram semanas sem acesso a serviços básicos; outras perderam completamente seus acervos. Um mapeamento do Núcleo de Estudos de Geografia e Ambiente (Nega) e do curso Uniafro, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), mostra que aproximadamente 650 terreiros tiveram perdas totais.

No festival, lideranças relataram não apenas a destruição física, mas também o abandono institucional. “Na calamidade, ficamos à mercê de amigos e parceiros de outros estados. Em nossos municípios não encontramos acolhimento efetivo”, afirmou Mãe Patrícia do Xangô, que também teve seu espaço de axé atingido, a Casa de Orixás A Roça, no município de Feliz, na Serra Gaúcha.

Ela lembrou que os povos de terreiro historicamente são acolhedores, mas que, diante da catástrofe, precisaram proteger-se mutuamente: “Após tudo o que vivemos, tivemos novamente de nos recolher e nos acolher.”

Para Mãe Patrícia, a segunda edição do Festival Yabás convoca especialmente a força feminina dentro das tradições de matriz africana e reafirma a resistência da mulher preta, do ventre que sustenta vida e luta. “O festival traz o porquê continuar. Nosso povo é resiliente, mas não ficamos apenas sentados sendo resilientes”, afirmou. 

 

Enfrentar o racismo ambiental

Festival teve debates, toques de tambor, apresentações artísticas e feira / Jorge Leão

Durante a mesa de abertura do evento, Maurício Flores, tenente-coronel da reserva da Brigada Militar e agente da Igualdade Racial no Projeto Aquilombar, destacou uma expressão de racismo ambiental. “Os bairros periféricos foram os mais atingidos e não tiveram prioridade na reconstrução. Muitos dizem que é mimimi. Mas nós sabemos o que é, nós conhecemos (racismo ambiental).”

Flores relatou ter parentes atingidos no bairro Mathias Velho, em Canoas, e comparou o ritmo mais lento de recuperação à resposta recebida em outras regiões da cidade. Para ele, o enfrentamento ao racismo passa por estudo e apropriação de conhecimento.

“Como homem negro, busco me empoderar e me apropriar dessas questões”, afirma. Ele avalia que quando a população negra começa a se empoderar, “mexe com a branquitude — e isso é bom”. Por isso, defende ser necessário potencializar as ações.

 

Microviolências do racismo na infância

Durante o painel “Ensinar e Espelhar Sementes”, a coordenadora da Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola no RS, Fernanda Duarte de Oliveira, alertou que o racismo nas escolas é uma violência silenciosa que atinge bebês, crianças e jovens diariamente. “Cada bebê que não se vê na escola, até os três anos, com brinquedos, livros, afeto e cuidado com seus cabelos cacheados, é um possível candidato a não chegar à universidade no futuro.”

Ela explicou que microviolências como olhares, silêncios e ausência de representatividade corroem a autoestima e impactam todo o trajeto educacional de estudantes negros. Por isso, defendeu que sociedade civil, terreiros e organizações pressionem municípios e o Judiciário por respostas concretas. Citou ferramentas legais, como denúncias no Disque 100 e boletins de ocorrência, para acelerar processos de responsabilização.

Também ressaltou a necessidade de assegurar direitos específicos a estudantes de matriz africana, como dias de resguardo e proteção contra racismo religioso dentro das escolas. “São muitas camadas que essa temática atinge, envolvendo toda a comunidade escolar.”

 

Ancestralidade, cultura e esporte

Teatro de bonecos resgata memória e resistência / Jorge Leão

O festival contou com intensa programação cultural. O Boneco Bastião, criado por Julinho do Ase e Pai Júlio de Oxalá, e o Vovô Zuza, idealizado por Pai Alexandre D’Ogum e Fernando Gomes, animaram o público com personagens que resgatam memória e resistência.

O Afoxé Amigos de Katendê — homenagem ao Mestre Moa do Katendê, assassinado por intolerância política — emocionou a plateia ao som do mestre Ratinho. Houve ainda declamação de poesia com Joseande Prestes e apresentações de hip hop com o grupo Aguere.

No painel sobre esporte e cultura, a jovem liderança comunitária Jéssica Cardoso, da Associação dos Moradores e Amigos da Vila Tronco (Amavtron), trouxe um alerta sobre o sonho do futebol entre meninos negros: “Hoje a gente vê muita ostentação, a influência do YouTube e da internet. Os meninos querem ser Neymar. Mas se tu não tem um padrinho, tu não chega. E aí vem a frustração”.

Ela relatou histórias de adolescentes enganados por empresários e isolados em centros de treinamento, longe da família. “Acompanhei muitas mães e muitos filhos chorando ao telefone”, contou. Na Amavtron, que funciona como um ponto de cultura na Grande Cruzeiro, em Porto Alegre, a orientação é mostrar tanto o direito de sonhar quanto as “armadilhas da vida”.

Também presente, o professor e ex-árbitro Márcio Chagas reforçou a importância do esporte como espaço de formação, disciplina e respeito, e não apenas como possível carreira profissional. Em sua trajetória, o esporte também foi porta de acesso à educação por meio de bolsas escolares.

Chagas destacou o valor do resgate da cultura ancestral da negritude e o aprendizado com diferentes gerações. Lembrou da perseguição e da discriminação sofrida por praticantes de matriz africana e reforçou a necessidade de apoiar esses movimentos: “O nosso propósito é dar continuidade e fortalecer para que as tradições de matriz africana não desapareçam.”

 

Democracia religiosa e convivência 

Um dos momentos mais simbólicos do festival foi a participação do padre José Ivo Follmann, da Unisinos, que integra um grupo inter-religioso com 13 tradições, incluindo quatro de matriz africana. Aos 79 anos, o padre afirmou estar “descobrindo um mundo maravilhoso” ao acompanhar o festival: “É um encanto estar aqui e ouvir esses depoimentos emocionantes.”

Para Mãe Isabel, a presença dele resume o que o festival defende: convivência real. “O muro da nossa casa divide com uma igreja católica. O padre escuta os nossos tambores e nós não temos problema nenhum com isso”, afirmou.

Segundo ela, o diálogo é concreto: “Quando estou sem insumos para ajudar minha comunidade, vou lá e pergunto: ‘Padre, o senhor tem alguma cesta básica?’ E eles têm. Têm cobertores, ajudam. Podemos nos ajudar sem olhar quem fez a ação. É sobre ajudar quem precisa.”

Evento contou com diversas rodas de conversa / Jorge Leão

 

Uma luta diária

Para Pai Dejair de Ogum, integrante do Conselho de Povos Tradicionais de Matriz Africana de São Leopoldo, o festival representou “comunidade, cultura, tradição e resistência dos povos de matriz africana” e reforça a necessidade de respeito e aceitação social. Ele destacou que as religiões de matriz africana estão entre as poucas que empoderam a mulher como liderança.

Mãe Patrícia lembrou que terreiros estão articulando, no mês de novembro, atividades com movimentos sociais para debater caminhos para o futuro, como cuidar da natureza, dialogar com o poder público e cobrar respostas das instituições. “É esse o lugar e a força que o festival carrega”, disse.

Segundo Mãe Isabel, com a conclusão do evento neste ano, a edição de 2026 já começa a ser planejada. Contudo, ela destaca que luta vai muito além do mês de Consciência Negra: “Falar de negro não basta só em novembro. O racismo está aí todos os dias, na escola, nos hospitais, onde a população mais pobre e negra não recebe atendimento efetivo. Nossa luta começa em janeiro e termina em 31 de dezembro”.

 


Esta matéria é parte das ações do Projeto “Igualdade e Cultura Negra: Vozes e Territórios”, executado em parceria com o Ministério da Igualdade Racial. O apoio se dá conforme o Termo de Fomento nº 973281, correspondente à Meta 6 (Produção de Matérias escritas para mídias digitais).

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