Porto Alegre é a Capital com o maior número de territórios urbanos quilombolas no Brasil

Fabiana Reinholz e Marcelo Ferreira
Editado por: Ayrton Centeno
“A história da escravidão aqui foi violenta, marcada por assassinatos e repressão, como no caso de Porongos (massacre de soldados negros durante a Revolução dos Farrapos). Qualquer medida de compensação é pequena diante da violência histórica”. É o que lembra o chefe da Divisão de Regularização de Territórios Quilombolas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no estado, Sebastião Henrique Santos Lima.
“O direito à terra e às políticas públicas para quilombolas – continua – é uma obrigação do Estado, não um favor”. Com mais de 100 quilombos em processo de regularização, o estado tem a capital com o maior número de quilombos urbanos do país somando 11 territórios ao todo.
Para o Instituto Cultural Padre Josimo, que executa o projeto “Igualdade e Cultura Negra: Vozes e Territórios”, realizado com Termo de Fomento nº 973281 através do Ministério da Igualdade Racial, a partir de emenda da então deputada federal Reginete Bispo (PT-RS) – Lima descreve a situação no Rio Grande do Sul.
Qual é o quadro dos quilombos no Rio Grande do Sul hoje?
Sebastião Henrique Santos Lima: Nós temos no Incra 116 processos de regularização de territórios quilombolas. Desses, apenas cinco estão titulados, sendo dois urbanos e dois rurais e um titulado pela prefeitura de Morro Redondo. Os urbanos são o Quilombo Chácara da Rosa, em Canoas, e o Quilombo Família Silva, em Porto Alegre. E os rurais são o Quilombo de Casca, em Mostardas, e o Quilombo Rincão dos Martimianos, em Restinga Seca.
Temos também 24 Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID) publicados e cerca de 21 portarias de reconhecimento e 15 RTID em andamento. Para contextualizar: são 116 processos abertos, quatro títulos emitidos e dez territórios decretados para desapropriação, incluindo esses já titulados. Ou seja, ainda há um grande passivo diante dos 116 processos, muita coisa ainda precisa ser feita.
Calcula-se que, no estado, existam até 180 comunidades quilombolas.

E quantas comunidades quilombolas existem no estado?
Durante as enchentes, entregamos cestas básicas a 160 comunidades quilombolas, distribuídas por 60 municípios. Dessas, 136 são certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP), ou seja, reconhecidas oficialmente como quilombolas.
Das 136, 116 já possuem processo de regularização no Incra. Mas há estimativas de que o número total chegue a 180 comunidades porque muitas ainda não se autodeclararam como quilombolas e não têm processo aberto. É um número dinâmico. Só no último ano abrimos quatro novos processos.
Como funciona o processo de reconhecimento e titulação dos territórios?
Até 2010, o Incra podia abrir processos mesmo sem a certificação da Fundação Palmares, mas, para dar andamento ao processo, ela era obrigatória. Atualmente pode-se abrir o processo, mas, para dar andamento, é necessária a certificação da FCP. A Constituição de 1988 garante que o Estado deve titular as áreas ocupadas por remanescentes de quilombos. No governo Sarney, foi criada a Fundação Cultural Palmares com a tarefa de reconhecer as comunidades e titular os territórios.
O problema é que a FCP não tinha estrutura técnica, engenheiros, agrônomos, topógrafos, para realizar o que o Incra faz hoje: a desintrusão, ou seja, a regularização fundiária e a retirada de sobreposições de propriedade.
Em 2003, com o Decreto 4.887/2003, a tarefa de identificar, regularizar e titular os territórios quilombolas passou para o Incra.
Quando identificamos um território quilombola, fazemos um levantamento fundiário completo: verificamos se a área é pública, de preservação ambiental ou privada. Se for pública, pertencente ao estado, município ou órgão federal, o Incra não pode titular diretamente. Encaminhamos o processo ao ente federado para que ele conclua a titulação, como determina o Decreto 4.887/2003.
O Incra não tira terras de ninguém sem indenizar
Quando a área está dentro de unidade de conservação, há uma resolução entre o Incra e o Ministério do Meio Ambiente garantindo a permanência das comunidades, respeitando as regras ambientais. Isso foi uma grande conquista, porque antes os quilombolas eram obrigados a sair de parques, mesmo sendo eles quem historicamente preservaram aquelas áreas. Hoje, a regra é que, nesses casos, eles permaneçam prioritariamente no território.
Se a área for privada, o Incra faz o levantamento fundiário, identifica os proprietários e realiza o que chamamos de cadeia dominial: rastreamos o histórico da propriedade até a origem, o “destaque do patrimônio público”, e, comprovada a posse legal e de boa-fé, o Incra indeniza o proprietário em dinheiro, a valor de mercado.
Essa é uma diferença essencial: o Incra não tira terras de ninguém sem indenizar. Pagamos o valor de mercado e, depois, transferimos o registro para o nome da associação representativa do quilombo.
O território é coletivo, impenhorável, imprescritível e inalienável: não pode ser vendido, penhorado ou transferido. É um direito garantido para as gerações futuras, um resgate da luta dos antepassados, a luta de quem está hoje e a preservação do direito de quem ainda virá.

Por que os processos demoram tanto?
Porque são muito complexos. Quando se trata de áreas públicas, o trâmite é mais simples. Mas nas áreas particulares é preciso ter base técnica, jurídica, histórica e antropológica sólida. O Incra precisa provar que aquele território é da comunidade, com relatórios sócio-históricos, antropológicos e ambientais detalhados: informações históricas, antropológicas, genealógicas e o cadastro das famílias.
Vivemos um momento delicado. A Justiça Federal já suspendeu ou até extinguiu processos de titulação
Esses relatórios levam mais de um ano para serem feitos. Depois da publicação do resumo nos jornais de grande circulação, vem o período de contestação de 90 dias a partir das notificações dos proprietários e confrontantes e, muitas vezes, de judicialização, o que pode suspender os processos por dois, três anos ou mais. Temos processos que tramitam há mais de 20 anos e ainda não chegaram à fase de RTID.
Vivemos um momento delicado. A Justiça Federal, em alguns casos, suspendeu ou até extinguiu processos de titulação. Um exemplo é o quilombo São Miguel dos Pretos, em Restinga Seca, em que o juiz se baseou em laudo de um historiador especialista em cultura alemã para extinguir o processo, algo que não tem relação com o tema. O Incra está recorrendo.
Outro caso grave é o de Cambará, em Cachoeira do Sul, que estamos recorrendo no Supremo Tribunal Federal por uma questão semântica. Obviamente que não é, mas dar a impressão que há uma intenção deliberada de prejudicar os quilombolas. Por isso, o Incra precisa reunir argumentos técnicos, jurídicos, administrativos e políticos muito consistentes para defender os processos e consequentemente os territórios.

Como é feito o processo de delimitação do território?
Nós fazemos um levantamento detalhado chamado relatório sócio-histórico-antropológico e ambiental, que pode ser realizado diretamente por nossos técnicos em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ou ainda contratando empresas especializadas. No momento, estamos realizando cinco relatórios financiados por uma emenda parlamentar de R$ 1 milhão da deputada federal Reginete Bispo. Um dos cinco relatórios é o da comunidade Von Bock, em São Gabriel. Esses relatórios são peças mais importantes do RTID.
A comunidade aponta seus locais históricos, onde ocupou, onde ocupa e os motivos de eventual saída. Tudo é montado como um quebra-cabeça. Ao final, apresentamos o chamado território de pleito, que é um mapa do que a comunidade reivindica.
Esse mapa se junta a outros relatórios, cadastros de comunidades, levantamento fundiário, mapa planta e memorial descritivo. Nossos técnicos vão a campo para delimitar a área, considerando referências naturais, como arroios, e dando orientações técnicas.
Depois, a equipe de antropólogos e agrônomos emite uma nota técnica confirmando que o relatório cumpre a norma técnica, seguida de parecer jurídico. Após aprovação pelo Conselho de Direção Regional, formado pelo superintendente e os chefes das divisões, publicamos um resumo no Diário Oficial da União e do Estado em dois dias consecutivos e notificamos todos os proprietários e órgãos públicos. Abrimos prazo de 90 dias para contestação, respondemos cada contestação, se a contestação modificar o mapa, publicamos o RTID novamente.
Atualmente, temos sete processos em fase de decreto e sete em fase de portaria
Raramente aceitamos contestações, porque quase nunca são relacionadas ao direito dos quilombolas. Depois disso e passado o prazo para contestações e se não houver recurso ao Conselho Diretor do Incra, passamos para portaria de reconhecimento do território. Se não houver judicialização, a Casa Civil da Presidência da República, avalia o recurso para pagamento de indenizações e prepara o decreto de desapropriação da área do território.
Qual é a situação de quilombos que estão há muito tempo em processo, por exemplo, há 20 anos?
Temos 116 processos, sendo mais de 30 ações civis públicas que obrigam o Incra a priorizar determinadas demandas. Essas ações passam na frente dos processos por exigência judicial. A limitação de pessoal e orçamento também dificulta acelerar os processos.
Além dos titulados, algumas comunidades, como a do município de Jacuizinho, estão com CCDRU (Contrato de Concessão de Direito Real de Uso) e outras com portaria, etapa que ocorre após o RTID, quando não há contestação e o presidente emite a portaria definindo o território. Alguns processos podem seguir para decreto presidencial, com avaliação técnica, jurídica e política pela Casa Civil, incluindo recursos financeiros para pagamento aos proprietários.
Atualmente, temos sete processos em fase de decreto; sete em processos em fase de portaria, cinco a nove RTID em andamento e seis relatórios técnicos de identificação e delimitação.
No caso do Quilombo Kédi, em Porto Alegre, que enfrenta conflitos fundiários e especulação imobiliária, qual é a situação?
O Kédi é uma exceção. O processo foi aberto em 2021 e começou a tramitar no Incra em 2023, após a certificação da Palmares, ou seja, é um processo muito recente. Já temos relatório antropológico, proposta de delimitação de território e cadastros feitos.
Existe uma política da prefeitura de Porto Alegre de retirar pretos e pobres das áreas valorizadas
É um caso emergencial, porque existe uma política institucional da prefeitura de Porto Alegre de retirar pretos e pobres das áreas valorizadas da cidade. Isso se repete historicamente.
A situação hoje é judicial. Em 2023, a Justiça estadual condenou a prefeitura a garantir políticas públicas à comunidade, mas a sentença dizia que poderiam ser implementadas “em outro local”. O prefeito usou isso para propor a remoção das famílias, e a maioria recusou.
Neste ano, as demolições recomeçaram com outra estratégia: moradores eram pressionados a aceitar acordos, enquanto a empresa completava a demolição. O advogado da comunidade entrou com ação por descumprimento de sentença, já que o desembargador havia proibido ações coercitivas e demolições.
Mesmo assim, a decisão foi relativizada. O Incra não tem poder de polícia nem de justiça – é um órgão administrativo. Não podemos impedir demolições diretamente; isso depende de ordem judicial. Nosso papel é técnico e administrativo.
O Incra pretende delimitar a área, inclusive com parte ocupada pelo empreendimento. Quando uma obra é considerada irreversível e fica comprovado que foi feita dentro de território quilombola, o responsável – prefeitura ou empresa – deve adotar políticas mitigadoras, como a construção de moradias dignas para a comunidade, por exemplo…
As mulheres são a cabeça pensante, que organiza e que enfrenta
A pergunta é: por que a urbanização exige a exclusão dessas famílias? Que gravidade existe em permitir que pessoas negras e pobres vivam próximas a áreas valorizadas?

Qual é o papel do Incra após a titulação da terra quilombola?
Após a titulação, o Incra encerra sua participação. A comunidade se torna proprietária da terra e passa a ser responsável por sua defesa, cabendo à Fundação Palmares atuar posteriormente.
Antes da titulação, o Incra utiliza todos os meios jurídicos de proteção do território. Políticas de crédito e habitação podem ser aplicadas, mas a responsabilidade administrativa passa para a comunidade e para órgãos competentes.
Eu brinco sempre que nós (homens) só servimos para carregar as coisas, arrumar e tal. As mulheres são a cabeça pensante, que organiza e que enfrenta.
Aqui tem a dona Ilza, do quilombo Casca. Foi a maior liderança mulher que tivemos nos últimos 20 anos. Nos deixou há alguns anos, mas era uma mulher que, além de pensar muito, era líder. Então, as mulheres são a liderança mais forte nas comunidades.
E, em outras questões do quilombo, muitos vivem da pecuária, da agricultura familiar…
Essa é uma questão porque os quilombolas estão meio no limbo. Eles são quilombolas e são agricultores. Mas, por exemplo, os créditos da seca aqui no Rio Grande do Sul — acho que foram dois – os quilombolas não receberam. Fui entregar crédito em uma região e havia uma fila de assentados, e os quilombolas do outro lado não receberam. Por quê? Porque eles não têm terra.
Nós até temos uma política de talão do produtor junto com a Secretaria de Estado, mas, de fato, eles não têm terra. Os assentados têm o lado do Incra. Então, teve seca, teve enchente, mas os quilombolas não recebiam. Agora vão receber.
Como está a situação dos quilombos depois das enchentes?
Nós atuamos emergencialmente. Entregamos quase 30 mil cestas de alimentos em 160 comunidades quilombolas. Mas agora é que está começando um cadastro mais profundo das comunidades, para que elas acessem os créditos emergenciais nos municípios que estiveram em estado de calamidade e emergência.
Ficamos paralisados nos governos Temer e Bolsonaro. Ou quase.
Nós temos 116 processos, e o cadastro ainda tem um sistema que precisa incluir os quilombolas. Hoje existe uma nova plataforma, a PGT — Plataforma de Governança Territorial, que facilitou a vida de todo mundo. Estamos tentando incluir os quilombolas, do jeito que são, dentro dessa plataforma, para que tenham direito a receber os créditos.
O que mudou do governo Bolsonaro para o atual na questão da titularização dos territórios?
Tudo. Nós ficamos paralisados nos governos Temer e Bolsonaro. Ou quase. Para você ter uma ideia, aqui teve uma quase abertura de PAD contra funcionárias da divisão, porque elas estavam cumprindo a lei.
Foi criado um setor em Brasília onde todo o processo tinha que passar, e parava lá. A política de regularização quilombola foi totalmente paralisada, e foi muito difícil para todo mundo.
Quantos profissionais o INCRA tem hoje no estado para atuar com os quilombos?
Hoje nós temos quatro antropólogos, uma antiga, uma em licença para doutorado e outra em um cargo em Brasília e uma está cedida ao MDA. Temos dois agrônomos, uma secretária e eu. Então, são seis ou sete funcionários para tudo isso. E isso porque recebemos três novos, senão estaríamos bem piores.
O orçamento para o dia a dia melhorou bastante. Não temos problema para viagem, por exemplo. Nosso único problema é que o orçamento nacional diminuiu: de R$ 180 milhões para R$ 130 milhões destinados à indenização de proprietários. Para você ter uma ideia, só com quilombos urbanos aqui, vamos pagar cerca de R$ 30 milhões — e outros R$ 20 milhões com o Gravataí.
O que é preciso fazer para avançar na titularização?
Primeiro, entender que essa obrigação não é só da União. O estado do Rio Grande do Sul tem uma lei muito mais avançada que o Decreto Federal 4.887. Foi criada no governo Olívio Dutra, projeto do então deputado Edson Portilho, do PT. Só que hoje não tem uma pessoa que trabalhe com quilombo no estado.
Para avançar na titularização, o estado e os municípios têm que ajudar o Incra
Os municípios também podem agir. Durante o processo da Família Silva, por exemplo, aprovaram uma lei na Câmara Municipal que criou a área de interesse cultural. Toda comunidade quilombola pode ser regularizada pelo município, mas não querem fazer.
E aí todo mundo cobra do Incra: Ministério Público, Justiça, e ninguém cobra desses entes. Então fica difícil, porque nós não temos braço para tudo isso, enquanto eles se fazem de mortos e não fazem nada
Temos, por exemplo, um programa chamado Terra Cidadã, que envolve os municípios e várias políticas que os prefeitos podem assumir conosco. Podemos fazer um ACT — Acordo de Cooperação Técnica — e o Incra entra com um agrônomo, antropólogo ou outro técnico e o município com seus profissionais. Isso adianta o processo. Mas tem que querer fazer. Porque, sobrando só para nós, não tem como.
Há um estudo que mostra: se for nesse ritmo que estamos titulando terras no Brasil, vai levar mais de 500 anos para terminar. Então precisamos de parceria. Temos universidades muito parceiras, mas com limitações.
E, obviamente, as comunidades têm que estar organizadas. Nós somos Estado, não temos como organizar ninguém, isso seria cooptação. Mas quanto mais organizadas estiverem, mais as coisas acontecem.
A história da escravidão aqui foi violenta, marcada por assassinatos e repressão, como no caso dos Porongos. Qualquer medida de compensação é pequena diante da violência histórica. O direito à terra e às políticas públicas para quilombolas é uma obrigação do Estado, não um favor. Temos um passivo muito grande na titulação dos territórios quilombolas.
Esta matéria é parte das ações do Projeto “Igualdade e Cultura Negra: Vozes e Territórios”, executado em parceria com o Ministério da Igualdade Racial. O apoio se dá conforme o Termo de Fomento nº 973281, correspondente à Meta 6 (Produção de Matérias escritas para mídias digitais).