Do Sul21, por Marco Weissheimer
O que é um alimentação verdadeiramente saudável? A pergunta formulada pela chef de cozinha Bela Gil permeou a quinta edição do Fórum dos Grandes Debates, promovido nesta quarta-feira (4) pela presidência da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e que teve como tema “Agroecologia e alimentação saudável: desafios para a intervenção do Estado”. Coordenado pelo presidente do Legislativo, Edegar Pretto (PT), o debate fez parte da programação do Seminário Políticas Públicas para Agroecologia na América Latina e Caribe, que prossegue nos dias 5 e 6 de outubro. Organizado em parceria pela Assembleia, pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pela Red Políticas Públicas y Desarollo Rural en America Latina, o encontro reúne pesquisadores de vários países do continente e da França.
Com o auditório Dante Barone lotado, o deputado Edegar Pretto abriu o encontro defendendo o direito de a população saber como o alimento que está consumindo foi produzido e se esse processo envolveu uso de agrotóxicos ou não. O presidente da Assembleia anunciou o lançamento da campanha “Antes de abrir a boca, abra sua cabeça”, que se prolongará ao longo de outubro, destinada ao esclarecimento da população sobre a qualidade da alimentação que ela está consumindo no cotidiano.
As resposta dada por Bela Gil e pelos demais debatedores sobre o que é uma alimentação saudável sinalizou que a maior parte do que é comumente considerado como “comida” na nossa alimentação diária não passa de repositores energéticos de baixo valor nutricional e alto potencial para alimentar enfermidades como doenças cardíacas, diabetes e diferentes tipos de câncer.
“Comida não é só paladar”
Abordando a pergunta que ela mesmo fez, Bela Gil disse que uma alimentação verdadeiramente saudável é tudo aquilo que faz bem ao nosso corpo, respeita a natureza e valoriza quem está produzindo. “A comida não é só o paladar. O prazer de comer algo não vale a pena se essa comida causa algum tipo de dano a quem produz, ao meio ambiente e ao nosso próprio corpo. É muito importante saber de onde vem a nossa comida e como ela é feita. Acredito muito na alimentação como instrumento de transformação, mas, comer só é um ato político quando se tem a oportunidade de escolher, o que não é o caso neste tipo de situação no Brasil”, defendeu.
Em sua fala, Bela Gil não deixou dúvida a respeito do que pensa sobre essa questão: “A resposta aos problemas causados pelo atual sistema de produção de alimentos está na agroecologia, que é um modo de produzir e de pensar justo, ético e saudável. Precisamos de uma melhor distribuição de terras, de uma Reforma Agrária urgente. No período da Revolução Verde, muita gente acreditava que precisaríamos aplicar agrotóxicos para alimentar o mundo. Em março de 2017, um relatório da ONU (Organização das Nações Unidas) apontou a agroecologia e a reforma agrária como caminhos para termos uma comida saudável para todos”. Nós já produzimos, acrescentou Bela Gil, comida em quantidade suficiente para alimentar o mundo. “O problema é o modo de produção e de distribuição da comida, que está concentrado na mão de alguns poucos grandes grupos. O problema da fome não é técnico, mas político. A forma como a gente come pode mudar a forma de produzir no campo”.
A chef de cozinha citou um recente artigo publicado no New York Times que trata de como as grandes empresas de alimentação conseguiram viciar o Brasil em junk food (“How big business got Brazil hooked on junk food”). Para Bela Gil, a agroecologia é um poderoso instrumento para lutar contra esse vicio e para construir um novo padrão de produção, distribuição e consumo de produtos alimentares no país. “A agroecologia é a resistência da comida de verdade contra os alimentos superprocessados. Com o avanço do consumo desses produtos superprocessados vamos perdendo nossa cultura alimentar e aumentando os problemas de saúde.”
Ela citou o caso de alergias alimentares como a ao glúten, proteína presente no trigo. “O brasileiro consome trigo de manhã, de tarde e de noite. O café da manhã típico do brasileiro é um pão com margarina ou, sendo otimista, com manteiga. Ao meio-dia, come uma massa. À tarde, como alguns biscoitos recheados e, à noite, quer comer uma pizza. Há diversos outros tipos de alimentos que fazem parte da nossa cultura alimentar e que poderiam ser consumidos, como o milho e a mandioca, mas não são. Além disso, muitas vezes temos Pancs (Plantas alimentícias não convencionais), como o dente de leão ou a ora-pro-nóbis, crescendo em nossas calçadas e quintais e não aproveitamos”.
Bela Gil deixou três sugestões para se adotar uma alimentação saudável. Em primeiro lugar, ter cuidado com a terra e saber de onde vem o alimento que estamos comendo. Em segundo, diminuir o consumo de alimentos ultraprocessados. E, em terceiro, prestar atenção aos rótulos. “Esse é o caminho para que nossos pratos se tornem coloridos, diversificados e verdadeiramente nutritivos”, defendeu.
Por uma Revolução Arco Íris
O pesquisador francês Patrick Caron, presidente do Painel de Alto Nível de Especialistas (HLPE) do Comitê de Segurança Alimentar da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), também defendeu a necessidade de uma revolução em nossos hábitos alimentares e no sistema agrícola como um todo. “O que acontece hoje no nosso sistema agropecuário não é sustentável. Precisamos de uma revolução da mesma amplitude que a da Revolução Verde, mas com objetivos diferentes. Precisamos de uma Revolução Arco Íris para produzir comida colorida, diversificada e de qualidade. As transformações que a agricultura sofreu nas últimas décadas se tornaram nefastas para a nossa saúde e para o meio ambiente. Hoje, a má alimentação é a principal responsável por enfermidades como doenças cardíacas, câncer e diabetes”, afirmou.
Mas não se trata apenas de um problema ambiental e de saúde pública, acrescentou o pesquisador. A forma de produção no campo, hoje, também conecta estreitamente a agricultura com temas como o modelo energético, a equidade social, o trabalho e o comércio, entre outros. Caron chamou a atenção também para o fato de que, tanto o problema da fome e da desnutrição quanto o da obesidade e do sobrepeso são, ao mesmo tempo, causa e consequência de conflitos no mundo inteiro. “Nós necessitamos produzir uma revolução nos sistemas alimentares como um todo e não só no modo de produção, com a adoção de políticas inclusivas e trans-setoriais. A escolha não pode ser entre a peste e a cólera, entre subnutrição e o sobrepeso. Os dois flagelos têm ser combatidos juntos”, afirmou o pesquisador, que defendeu a agroecologia como uma alternativa à agricultura tradicional que vem ganhando crescente atenção e interesse no mundo inteiro.
São Francisco de Assis e Ana Maria Primavesi
Liderança social do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e da Via Campesina, Frei Sérgio Goergen fez, em sua participação no painel, duas lembranças associadas à luta por uma nova forma de produção e de vida. A primeira foi de São Francisco de Assis, que é lembrado mundialmente no dia 4 de outubro. “Hoje é dia de São Francisco de Assis que cresceu em um ambiente de crise do feudalismo e de primórdios do capitalismo. Era filho de uma famílias de comerciantes que aspirava a condição de nobreza. Ele recusou tudo isso e foi buscar uma forma de vida simples, ligada à natureza e aos mais pobres, na periferia de dois sistemas, o feudalismo decadente e o capitalismo ascendente. Acho essa lembrança muito importante para enfrentar os dias difíceis que estamos vivendo hoje”.
A segunda lembrança foi da engenheira agrônoma e pesquisadora Ana Maria Primavesi, que completou 97 anos na última terça-feira. “O livro escrito em português mais traduzido no mundo é dela (“Manejo ecológico do solo”), mas, infelizmente, ainda não é devidamente valorizado nas nossas faculdades de Agronomia. Ela nos ensino algo muito simples: solo saudável é planta saudável, planta saudável significa comida saudável e comida saudável significa gente com saúde”. O trabalho de Primavesi defende a importância de restabelecer o equilíbrio entre o solo, organismos do solo, planas, animais e seres humanos, bem como proteger os sistemas de produção e modo de vida dos pequenos agricultores.
Essas lembranças, segundo Frei Sérgio, são fundamentais para entender os desafios que a agroecologia tem pela frente. “É difícil fazer agroecologia. Não é fritar bolinho em dia de chuva. Mas ela está sendo feita e é o caminho para não nos tornarmos todos sojívoros. Se esse termo não existe, estou inventando agora. A soja está presente na maior parte do consumo alimentar hoje em dia. Nós temos um grande conflito entre o agronegócio e a agricultura familiar. Eles não são apenas modelos diferentes, são inconciliáveis. Há uma luta de classes entre eles. O agronegócio representa um novo pacto de poder controlado, não mais pelo latifundiário, mas pelo capital financeiro nas bolas de valores. A soja que está sendo plantada hoje no Rio Grande do Sul já está mais de 30% negociada na Bolsa de Chicago. Nós precisamos de comida mineralizada, diversificada e colorida acessível para todos e não apenas para os mais ricos em algumas gôndolas de supermercados”, concluiu.
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