Eu deveria ter não mais que 17 anos quando fui a um show de Beth Carvalho pela primeira vez. Vivia o florescer das utopias e sonhava de olhos abertos em transformar o mundo com um grito. A urgência da juventude naqueles dias nos fazia crer não ser impossível enfrentar a grande rede de televisão com os panfletos impressos nos mimeógrafos da catequese, e justamente por não reconhecer o impossível, muitas vezes assim o fizemos.
Não era tempo de interconexão em rede, não sabíamos nada de internet, muito menos de celular e outros aparatos que fazem da narrativa dos nossos dias um grande mosaico de retalhos simbólicos. Éramos intensos, verdadeiros, transparentes. Trajávamos camisetas serigrafadas, calças surradas, velhos tênis companheiros. Como adereço, trazíamos o anel de Tucum nos dedos. O anel de luta, que demarcava nosso caminhar pelo caminho canhoto e nosso sonhar revolucionário de ser semente e ser fruto.
Eu deveria ter não mais que 17 anos quando vi a mesma Beth Carvalho que se apresentava nos programas nobres da grande rede de televisão subir em riba de um palco improvisado, costeado de bambu, abrigada por braços companheiros e protegida pela lona preta – que pelas mãos do povo deixou de ser símbolo de luto para tornar-se símbolo de luta.
Ali eu ficava sabendo que a “madrinha do samba” era também uma “madre” na luta social. Que mesmo tendo a opção de circular entre os nobres, não deixava de aceitar o chamado para cantar entre os pobres e pequenos. E ouvi da voz rouca da sambista referências a Brizola e Fidel. Ouvi em seu canto o chamado para que se retomasse o sentido do verde-amarelo-azul da bandeira usurpada. Ouvi sua voz emocionada a lembrar nomes de companheiros recém tombados e chamar o povo a responder “Presente! Presente! Presente!”.
Eu deveria ter não mais que 17 anos quando, ao final do cantar, esperei Beth Carvalho porque queria lhe dar um presente. E esse presente é o motivo de escrever este já longo texto. Não tinha nada nas mãos. Ou pensava não ter. Esperei ao lado da escada, em silêncio, meio cabisbaixo e envergonhado. Queria dizer o que sentia. Queria dizer “obrigado”. Estava em silêncio quando ela passou por mim e bateu em meu ombro com punho cerrado: “Te anima companheiro, que a vida é dura e só a luta a faz bonita”. Eu, cabeça baixa e mãos justapostas chamei “madre” e ela voltou a olhar em minha direção, sorriso aberto. “Deixa te dar um presente!”, e tirei meu anel te Tucum do dedo e alcancei em sua direção. De imediato ela tentou colocar em seu dedo e não serviu. Olhos nos olhos ela notou minha decepção e – parece que vejo hoje como há 23 anos atrás – sorriu de novo e me disse: “Já sei!”.
Tirou do pescoço uma correntinha dourada onde estavam alguns pingentes pendurados. Sacou fora as pequenas imagens e entregou para duas meninas que faziam artes em volta do grupo que se aglomerava em volta dela. Depois, fez a corrente passar pelo meio do anel e reposicionou no pescoço. Me deu um abraço, segurou meu rosto adolescente com as mãos, agradeceu e disse meia dúzia de palavras que me acompanham até hoje: “Em frente guri! Adelante!”. Virou-se e seguiu em frente, com meu “presente” pendurado no pescoço.
Marcos Corbari