Seminário em Foz do Iguaçu debateu diferentes interpretações para o caminho ancestral que interliga o território sul-americano do Pacífico ao Atlântico

Texto: Marcos Antonio Corbari
Fotos: Cadré Dominguez
Durante três dias (de 22 a 24/10) a Universidade da Integração Latino-Americana (Unila) debateu em Foz do Iguaçu os diferentes pontos de vista acerca do Caminho do Peabiru. A rota ancestral estabelecida muito antes da invasão europeia ao continente segue despertando interesse para povos tradicionais e originários, pesquisadores do espaço acadêmico, representantes de governos e empresas, bem como de movimentos sociais e populares.
O BdF acompanhou seminário e é possível afirmar: as contradições foram colocadas na mesa, entre aqueles que buscam construir uma rota turística com claro apelo comercial (notadamente vinculados a governos e empreendimentos comerciais), os que pedem a preservação do sagrado ancestral (povos originários e seus aliados) e aqueles que buscam a ressignificação da rota como uma rede viva que segue conectando temas e povos muito além do traçado geográfico original (movimentos sociais e populares).
Segundo os organizadores, foram cerca de 250 participantes inscritos e por volta de 350 pessoas circulando pelos diferentes espaços do encontro. Além da comunidade acadêmica, destacaram-se a presença de representantes indígenas das etnias Avá-Guarani e Kaigand, pesquisadores vinculados a outras universidades e centros de pesquisa, bem como mobilizadores sociais de diversos estados brasileiros e de pelo menos uma dezena de países.
Para o estudante Rafael Romanzini, do curso Relações Internacionais e Integração da Unila, o evento retomou o caminho como símbolo de resistência ao articular com movimentos sociais e trazer discussões sobre o uso da terra. “Provou-se que o futuro é ancestral, não somos separados da natureza, mas sim parte dela”, relatou, lembrando a cosmovisão de unidade expressa na tradição indígena.

“Como mais um ataque aos povos originários, o Peabiru tem sido usado como projeto econômico, sem nem sequer olhar as comunidades que trazem o caminho como algo milenar e sagrado”, denunciou o jovem. “Aqui Peabiru é retomado como projeto político. O Bem Viver ansiado pelos guaranis só é feito a partir da reflexão de como usamos a terra, de como observamos o que consumimos e de como aprendemos com comunidades que estavam aqui muito antes de nós e resistem até hoje”.
Atuante no processo de construção do seminário, a jornalista Renata Camargo, que veio de Portugal para fazer a mediação de duas mesas, lembrou que caminhar é um ato sagrado e as universidades precisam perder o medo de olhar e falar do sagrado. Para ela está claro que o espaço institucional do ensino superior precisa ampliar a sua cosmovisão em relação aos saberes, “que são tantos, que são múltiplos, que vem da prática”.
“As pessoas que estiveram no Seminário vieram até Foz do Iguaçu para olhar para o Peabiru como um horizonte do sonho de uma terra sem males que nos faz caminhar para um lugar mais justo. O Peabiru são as pessoas e nada pode ser feito em nome dele sem os que preservam a terra e as águas que são o caminho”, acrescentou.
O objetivo de caminhar em meio a diversidade, segundo ela, foi contemplado: “Pensamos um seminário que envolvesse os saberes indígenas e a presença Guarani transformou o ambiente, trouxe emoção, trouxe força e trouxe luz ao caminho e exigiu respeito a vida e a sua existência”.
Questionada a respeito das diferentes perspectivas que demarcaram o evento, Renata é incisiva: “Eu tive a honra de ouvir a saberia de uma mulher quilombola, de uma militante dos trabalhares Sem Terra, da luta pela habitação, dos pequenos agricultores, dos estudiosos, das entusiastas de um caminho que deve ser usado para contra colonizar. Mas ouvi também o pensamento eurocêntrico que vê a natureza como um produto, a especulação imobiliária, os predadores do turismo, os homens de ganância que ainda querem impor o seu olhar como fizeram em 1500, mas não permitiremos”, pontuou.
Povos indígenas e comunidades tradicionais seguem sendo violentados

As vozes de representantes do povo Guarani da região de Guaíra tiveram espaço garantido e refletiram a realidade que vivem atualmente, de violência extrema -, bem como de outros segmentos próximos a Foz do Iguaçu e que estão em pleno processo de retomada de territórios e sob constante ameaça de agressores que vem tanto das milícias agrárias quanto da institucionalidade que foi cooptada pelos interesses do agronegócio e da própria comunidade estabelecida nas cidades vizinhas que se deixam cooptar pelo discurso anti indígena.
“Entendemos que é importante falar sobre o Caminho do Peabiru, mas não podemos deixar de fora o que está acontecendo com os povos”, afirma Gilberto Benites, liderança Avá-Guarani, do município de Terra Roxa. “Isso que vocês vão fazer, de mexer com esse caminho sagrado, só vai dar certo se além de ter a participação dos pesquisadores da academia, ter também a participação dos rezadores da nossa espiritualidade e da nossa cultura”, afirmou, defendendo que o caminho sagrado dos povos originários não deve ser trabalhado sem a presença destes povos.
Na interpretação de Benites, as duas coisas podem acontecer – a consolidação do roteiro turístico e a manutenção do sagrado que caracteriza o caminho – mas é preciso que tudo seja feito com compromisso, respeito e, principalmente, a inclusão dos povos indígenas. “O que não pode acontecer é utilizar os momentos bonitos do caminho e e esconder a nossa existência, as nossas lutas, as dificuldades que enfrentamos”.
O líder Avá-Guarani apela para que os indígenas sejam ouvidos e os diferentes saberes sejam respeitados: “Nós podemos ensinar muito para vocês. Eu aprendi muito na universidade, mas o meu verdadeiro professor está dentro da aldeia, sentado na beira do fogo e vocês também podem aprender com ele assim como eu aprendi com os seus professores”, emendou.

Délia Taku Yju, diretora de uma escola indígena, falou sobre a luta dos indígenas pela demarcação de suas terras, lembrou que no passado um grande território da América do Sul, entre Argentina, Paraguai e Brasil, era chão Guarani. “Para nós não existe país, não existe fronteira, para nós existe a Tekoá, onde a nossa cultura se fortalece”, explicou Délia, comentando o quanto o encarceramento dos indígenas em áreas pequenas é prejudicial ao seu modo de ser e sentir o mundo.
As limitações para passar pelos espaços de fronteira quando buscam estabelecer contato com outros aldeamentos na Argentina e no Paraguai e são bloqueados pelos protocolos fronteiriços foi destacado pela educadora: “Nós andamos pelo caminho deixado pelos rezadores, é importante para nossa cultura ir visitar os parentes, ver como estão, isso é sagrado, mas mesmo os nossos rezadores mais antigos são barrados por não possuir um documento para atravessar a fronteira que nos foi imposta”.
Questionando o que foi feito do verdadeiro Peabiru, que unia diferentes povos e territórios pelo caminhar, e na atualidade está reduzido a vestígios delimitados por fronteiras e cercamentos: “Ainda sentimos a espiritualidade dos nossos antepassados na nossa luta, na nossa caminhada. A nossa caminhada está sendo muito difícil, muitas aldeias não têm mais espaço para o plantio, não consegue mais cultivar o que é sagrado. Hoje sequer estamos podendo ter a nossa Tekoá, o território demarcado. Estamos tendo dificuldades para manter as crianças e os jovens no caminho. A proximidade dos agrotóxicos está destruindo as nossas sementes sagradas, as plantinhas ficam indefesas, tudo o que é sagrado está nos sendo tirado!”, concluiu.
Povos tradicionais seguem sendo desafiados a sobreviver

Érico Massoli, professor do curso de Relações Internacionais e Integração e administrador do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina da UNILA, sinalizou que o seminário foi realizado em um momento sensível, marcado pelo processo de reintegração de posse contra o Quilombo Horta do seu Zé e da dona Laíde — uma comunidade que há décadas contribui para a preservação da memória dos povos tradicionais, promovendo a conservação ambiental e a educação popular em Foz do Iguaçu.
“Esse conflito, que expressa a luta pelo direito à cidade, exige uma resposta à altura por parte da universidade pública: ampliar o debate sobre os direitos das comunidades tradicionais e mobilizar a sociedade diante dos retrocessos e injustiças praticadas pelo poder municipal”. Para ele esse é o papel da Universidade: estar ao lado das populações historicamente marginalizadas, lutar por direitos e enfrentar as injustiças seculares que ainda assolam a sociedade brasileira. Cabe, especialmente à Unila, articular o conhecimento científico aos saberes tradicionais.”
Um grupo de participantes do seminário visitou o quilombo e levou solidariedade à comunidade residente no território. Depois, de volta ao espaço do Campus Integração, realizaram uma manifestação espontânea, trancando a avenida Tancredo Neves em diferentes momentos, como forma de pressionar a Prefeitura – responsável pelo processo de reintegração de posse – e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que pode agilizar o processo de demarcação da área reconhecida e colocar fim a opressão da municipalidade.

“Nós nos fortalecemos na luta e quando recebemos o apoio de tanta gente, que veio de tantos lugares distantes, primeiro para conhecer nosso território e nossa história, e depois para somar com a gente fazendo um ato tão forte e tão bonito, nos sentimos mais fortes para seguir em frente”, afirmou Maria Serrate, liderança quilombola.
“Insistimos que as autoridades da prefeitura venham nos visitar, nos conhecer, e que retirem essa ação de reintegração de posse. A gente vai lutar para permanecer porque os nossos descendentes vão estar aqui para fazer permanecer a nossa cultura e as nossas memórias. A gente enfrenta muito conflito, muito preconceito, mas a terra nos mantém vivos”, completou.
Ao final do ato ela agradeceu: “Hoje eu tenho orgulho de dizer que somos quilombolas em um território reconhecido pela Fundação Palmares, mas vai chegar o momento em que teremos a alegria de receber vocês novamente e com o documento na mão dizer: essa é uma terra demarcada!”.
O desafio da integração entre os povos e nações

Tairi Felipe, que integra a direção nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) expressou que os movimentos sociais vinculados à Via Campesina Internacional, partem de uma orientação socialista para tratar do tema, ficando claras no encontro as contradições entre os que olham para o Peabiru como “coisa” e os que de fato o interpretam como caminho e rede: “É nesse marco que pensamos e construímos nossa política de articulações e as nossas relações internacionais, acreditamos que a igualdade, o acesso pleno aos direitos e a vida de qualidade só serão alcançados com a superação da sociedade de classes”.
Orientado pela teoria de dependência, o MPA tem estabelecido o entendimento de que a transformação social que se espera e que é compreendida como necessária só será vitoriosa se feita em escala global. “Nesse sentido a integração latino-americana e caribenha é um passo essencial. Integração que deve ser inspirada na teoria revolucionária e nas experiências concretas, na ancestralidade dos povos indígenas e nas resistências quilombolas”.
Para Felipe, “a forma de ser e de viver desses povos que não se curvaram a hegemonia capitalista são fonte de inspiração e exemplo vivo de como superar o capitalismo”. Lembrou ainda o desafio deixado pelo saudoso Pepe Mujica, ali mesmo em Foz do Iguaçu, quando participou da Jornada Latino-Americana e Caribenha de Integração dos Povos, quando desafiou a retomada dos laços que constroem a Pátria Grande.
A escritora Kaigang, Jovina Renhga, que veio de Curitiba para participar no evento, também pediu por respeito e integração: “Viver com maior irmandade, respeitando as diferenças de cultura e espiritualidade, é o começo”. Ela explicou que a relação dos povos com a terra e a natureza não é por princípio de exploração, mas sim de integração. “Natureza é vida, dela vem nosso alimento, na terra plantamos nossas sementes, se a natureza é ferida toda a vida sente a dor, inclusive nós”.

Além das tradicionais peças de artesanato utilizando sementes como matéria prima, Jovina também estava apresentando no evento o seu último livro, “Uma Mulher Kaigang”, em escrita bilingue, publicado pela editora Donizela. Temas como a luta das mulheres indígenas, a violência do agronegócio, machismo e feminismo, respeito a natureza, discriminação, cultura, entre outros são abordados no livro, que apresenta ainda fotos de Carol Castanho e ilustrações de Ricardo Werá.
“Para nós é muito importante visitar os parentes, conhecer as diferentes realidades, pegar na mão para caminhar juntos, se fortalecer”, afirmou Jovina.
O evento foi transmitido pelo Youtube da Ilaesp-Unila e seguem a disposição para os interessados que desejarem se aprofundar nos temas. A organização está recolhendo ainda ensaios e artigos dos participantes para a organização de uma publicação futura.
Para Cadré Dominguez, jornalista, pesquisador do Peabiru e um dos idealizadores do seminário, a ação buscou marcar à posição de que o Caminho é cultura indígena, quilombola, da agricultura familiar, dos pesquisadores autodidatas que sempre atuaram como guardiões deste saber tão antigo e tão esquecido.
“ É uma ação de contracolonização das mentes, dos corpos, dos saberes. O Peabiru é vivo e é a vida desta pessoas que estão na luta diária”.
Confira a participação do jornalista Marcos Antonio Corbari, do Instituto Cultural Padre Josimo, sintetizando em forma de rap os debates dos três dias de seminário: https://www.instagram.com/p/DQL1Mv7jtvR/