Laboratório da Unipampa desenvolve tecnologias alternativas para utilização do carvão mi-neral Carboquímica aponta possibilidades de ampliar aproveitamento com diminuição dos danos ambientais
Autor: Marcos Antonio Corbari
Jornalista do Instituto Cultural Padre Josimo

Na região da Campanha, localizada nas proximidades da fronteira entre Brasil e Uruguai, está localizado um território cuja maior riqueza mineral é o Carvão, dele derivando aspectos socioeconômicos relevantes de forma direta ou indireta para toda a população. Ali, no município de Candiota, esse item tornou-se sinônimo de desenvolvimento social e também alvo de preocupação para ambientalistas ao longo dos anos. Atualmente a extração de aproximadamente 12.800 toneladas de Carvão/dia em duas minas ativas, sustentam as fornalhas das usinas termelétricas Candiota 3 (Fase C) e Pampa Sul, que geram 600 Megawatts de energia elétrica que é injetada no sistema de distribuição do Rio Grande do Sul e atende 6,67 % da necessidade do estado. O impacto social local é grande, pois são cerca de 5 mil empregos gerados (direta e indiretamente) através das usinas, das minas e das demais atividades diretamente associadas.
A neutralização das emissões de carbono e outros gases nocivos que são produzidos na queima do carvão mineral, bem como a recuperação das áreas de terra degradadas pela mineração tem sido temas recorrentes para os envolvidos nessa cadeia produtiva e motiva ações de pesquisa em diversos segmentos. Entre estes está em destaque, desde que o debate ganhou ares públicos, as atividades desenvolvidas pelo Laboratório de Energia e Carboquímica (LEC) da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Campus Bagé-RS. O campo de pesquisa da Carboquímica está sendo apresentado justamente como uma das chaves para a utilização do carvão com maior aproveitamento e menor emissão de resíduos e gases do que é atualmente praticado, induzindo inclusive a produção de uma maior quantidade de itens com potencial de aproveitamento e indução de desenvolvimento social.
Dado o momento em que se propõe a “descarbonização da economia” – vide a inserção do Brasil no Pacto de Glasgow, que projeta a diminuição gradual das emissões de CO2 até a neutralidade total, em 2050 – as pesquisas conduzidas pela professora doutora Ana Rosa Muniz*, bem como pelos demais pesquisadores vinculados à área na Unipampa, acenam para a possibilidade de seguir utilizando este recurso mineral de forma racional e ambientalmente responsável. Conversamos com a professora e conhecemos as instalações do LEC para tentar compreender por que essa estrutura e as pesquisas desenvolvidas ali podem ser a chave para que se efetive a transição energética justa, ambientalmente responsável e socialmente inclusiva na região que abriga a maior reserva de carvão mineral do país.

A Carboquímica não é uma novidade
Logo no início da visita ao LEC, Ana Rosa explica que as pesquisas em Carboquímica e Gaseificação não são uma novidade. “Há muitos exemplos de empreendimentos nesse setor já em operação”, explica, citando que, segundo a Global Technoligies Council, “existem mais de 250 plantas industriais de gaseificação operando no mundo”.
Alguns exemplos apontados são a Mitsubischi Power (Japão) e a The Wabash River Coal Gasification (Estados Unidos) que produzem Energia; a Eastman Chemical Company (Estados Unidos) que produz produtos químicos; a Saudi Arabian Fertilizer Company (Arábia Saudita) e a First-Ever Coal Gasification (Índia) voltadas a produção de fertilizantes, respectivamente Amônia e Ureia; e a Sasol Limited (África do Sul) que produz combustíveis. Aponta ainda que na China, país onde o setor Carboquímico é desenvolvido a partir de uma empresa estatal, existem mais de 150 Plantas de gaseificação de carvão para produção de produtos químicos, fertilizantes e energia elétrica.
O LEC foi instalado em 2016 e desde lá realiza atividades de pesquisa na central de geração de gás de síntese, central de geração de energia elétrica, setor de análises físico-químicas e central analítica. Os resultados das pesquisas são promissores e indicam viabilidade para a região carbonífera do RS a médio e longo prazo.
O espaço, dedicado exclusivamente à pesquisa e desenvolvimento de tecnologia soma cerca de 252 m² e atualmente busca a viabilização de investimentos para complementar as instalações e adquirir equipamentos ainda necessários para completar o ciclo e alcançar além dos resultados da produção, as informações esperadas da viabilidade econômico-financeira da utilização da tecnologia, colocando de vez em perspectiva a gaseificação e pirólise do carvão mineral de Candiota e o desenvolvimento de novos materiais utilizando cinzas do carvão da gaseificação, bem como a prospecção dos impactos econômicos e ambientais do processo quando implementado como atividade econômica.
Primeiras referências à química do carvão remontam à mais de 400 anos. Os primeiros estudos deste ramo da química que estuda a transformação de carvões em produtos úteis e matérias-primas para aplicações diversas remonta ao século XVI, porém é inegável que seu desenvolvimento ganha ritmo acelerado nas últimas 5 décadas e, na atualidade, alcança evidência e relevância. Frei Sérgio Görgen, diretor do Instituto Cultural Padre Josimo (ICPJ), instituição que atua nos projetos de recuperação ambiental das áreas degradadas pela mineração e também no plantio de árvores em áreas destinadas a recomposição vegetal para captura de carbono emitido no processo de geração de energia termelétrica, é um entusiasta deste segmento científico e faz um comparativo bastante direto: “Se existe uma indústria Petroquímica, no Brasil muito representativa através da nossa Petrobrás, que dedica-se ao estudo químico da utilização do Petróleo e seus produtos e coprodutos, está dado o momento de olhar com maior atenção para a Carboquímica, que de forma análoga pode induzir o aperfeiçoamento do processamento do carvão mineral”.

A professora Ana Rosa explica que é possível utilizar o carvão de uma forma ambientalmente mais alinhada, como também podem ser viabilizados coprodutos que atualmente não são alcançados no processo utilizado pelas usinas termelétricas. “O nosso laboratório tem como base a gaseificação e promove atividades e pesquisas nas linhas de geração de energia, material cerâmico, células fotovoltaicas, controle ambiental, carbonometria e sintéticos”. A partir das informações apresentadas pelas pesquisas realizadas no LEC, as organizações envolvidas no Polo de Inovação Energética e Ambiental do Pampa Gaúcho (CIDEJA, Sindicato dos Mineiros, Unipampa e ICPJ) já visualizam a possibilidade de inclusive utilizar as atuais estruturas das termelétricas desativadas (fase A e B da usina Candiota, hoje sob controle da empresa Âmbar Energia) e as que venham a ser desativadas nos próximos 15 anos (Usina Pampa Sul e Fase C da Usina Candiota) podem ser reconvertidas para o processamento carboquímico. Novos empreendimentos voltados diretamente ao processamento do carvão através da gaseificação também já estão no horizonte das forças vivas da região, como no caso do recente protocolo de intenções firmado entre a empresa brasileira VAMTEC Group, a estatal chinesa CNCEC e a prefeitura de Candiota.
Um exemplo consolidado citado por Ana Rosa é o da Mitsubishi, no Japão, que trabalha com carvão semelhante ao encontrado em Candiota e imediações. “Lá, dois terços da eletricidade gerada, se dá a partir da turbina a gás, enquanto um terço fica por conta da turbina a vapor convencional”. Os dados apresentados pela pesquisadora em um seminário realizado pelo Polo no auditório da Unipampa em abril passado mostram índices de eficiência maiores em relação a uma planta convencional, com emissão de Dióxido de Carbono e produção de cinzas menor, bem como requerendo um consumo menor de água no processo em relação ao praticado no sistema atual nos empreendimentos em operação na região.
LEC é uma sala de aula dinâmica e participativa O Laboratório de Energia e Carboquímica (LEC) da Unipampa proporciona ao visitante uma incursão em um ambiente de sala de aula dinâmico e participativo, onde os alunos e estagiários participam ativamente dos processos de produção e pesquisa. Lucas Wille e Cinthia Borges Ferreira demonstram, sob a supervisão direta da professora Ana Rosa todo o processo da gaseificação e o alcance dos produtos e coprodutos esperados.
A matéria prima dos projetos é o carvão mineral doado pela Companhia Riograndense de Mineração (CRM), Seival Sul Mineração e Carbonífera Cambuí. “O carvão é recebido britado e inicialmente é pulverizado até cerca de meio milímetro, e adicionado em silo com parafuso transportador através de rosca sem fim, alimentando o reator de gaseificação”, apresenta Cinthia. Na sequência entra em ação o gaseificador, uma estrutura industrial que consiste em um reator alimentado por carvão, ar e vapor de água como agentes gaseificantes e areia de quartzo como agente de fluidização. “A reação ocorre na temperatura de aproximadamente 900°C, em fluxo de leito fluidizado e borbulhante, recomendado para carvões com alto teor de cinzas como os nacionais”, acrescenta. Ali acontecem reações heterogêneas sólido-gás e também homogêneas na fase gasosa. “O produto resultante é o syngas, contendo preferencialmente monóxido de carbono e hidrogênio”, acrescenta Ana Rosa, indicando que também resultam da reação como coprodutos as cinzas leves e pesadas e o alcatrão de hulha.
“Todo processo é monitorado por computador por meio de 10 sensores de temperatura e seis transístores de pressão. A qualidade do gás de síntese (syngas) é obtida por meio de equipamentos analíticos importados usando diversos gases especiais, como hidrogênio, oxigênio, hélio, nitrogênio, metano, monóxido de carbono, argônio, acetileno e óxido nitroso”, explicou Lucas. Esses gases servirão para equipamentos como cromatógrafo gasoso, cromatógrafos hídricos de alta performance, detectores de fluorescência e de massas, absorção atômica e calorímetro. Esses equipamentos ocupam os laboratórios de cromatografia e análises físico-químicas.
Os dois alunos pesquisadores explicam ainda que a tecnologia de ciclo integrado combinado com gaseificação consiste na combustão de syngas. Essa é uma tecnologia limpa e de fácil captura de dióxido de carbono. “As cinzas pesadas e leves são misturadas com argila e enviadas para uma estrusora a vácuo onde é fabricado material cerâmico usado para agregar valor à síntese”, finalizam. Os projetos atuais do LEC consistem em: perspectivas para a Carboquímica no RS; efeito da adição de água na gaseificação; desenvolvimento de tecnologia em energia e carboquímica na região da campanha; e simulação computacional de processos de conversão térmica de carvão mineral.
A transição energética socialmente inclusiva e ambientalmente justa. Questionamos a professora Ana Rosa acerca da transição energética e perguntamos quais resultados alcançados através das pesquisas do LEC podem contribuir neste processo. “A transição energética está longe de ser uma simples substituição de fontes fósseis (carvão e petróleo) por fontes renováveis. A transição energética é uma descarbonização gradual. Nós vamos reduzindo emissões de CO2 principalmente, através de novas tecnologias”, afirmou. Segundo ela o LEC já vem fazendo a transição energética há pelo menos uma década: “Nós nunca queimamos carvão mineral no nosso laboratório, temos uma tecnologia de uso mais limpo que é a gaseificação. Você vai transformar esse carvão em gás de síntese e a partir dele você pode fazer uma infinidade de produtos”. Uma vez que já vem sendo executado o processo de descarbonização, as equipes da Unipampa têm se focado mais na produção do syngas, “pois pode produzir não só energia elétrica, mas também gás natural sintético, gasolina, diesel, até plásticos, fertilizantes entre outras possibilidades”.

Os pesquisadores e pesquisadoras do Grupo de Pesquisas de Engenharia e Processos de Sistemas Particulados e o Grupo de Pesquisas Avançadas em Engenharia de Energia formalizaram a proposta de um plano de transição energética. Ana Rosa alerta, porém, que essa transição não pode ser feita de um dia para o outro, lembrando que é temerário ficar dependente das condições do clima para geração de energia, sendo preciso manter a garantia de energia firme. “A ideia é integrar mais ainda o carvão, através de tecnologias mais limpas, com baixa emissão ou até mesmo emissão zero, na nossa matriz energética. Vir a somar, integrar, acumular dentro da matriz energética”, expressou. “Nosso plano de transição ele vai de 2023 até 2050, contemplando os acordos assinados que preveem chegar a emissão zero. Visando esse horizonte de 27 anos, que parece longo, mas não é, se tratando de ciência e tecnologia, e de que a transição não pode ser feita repentinamente, pelo menos para ser justa precisa ser feita de forma muito planejada”.
Em uma audiência pública realizada na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, em Brasília, no mês de setembro, Ana Rosa explicou os processos e etapas da gaseificação e os resultados alcançados pelo projeto, que trata de uma unidade de pré-tratamento de carvão, onde há um syngas primário. “A ideia é usar este syngas primário e, a partir dele, obter um syngas para a geração de energia em um segundo gaseificador convencional”.
Outro aspecto destacado é a possibilidade da produção de Gás Natural Sintético a partir do carvão, cuja produção em solo brasileiro é insuficiente para atender a demanda nacional, sendo necessário importar da Argentina e da Bolívia. Em ambos os países vizinhos o processo de extração é ambientalmente condenável, por ser a partir da exploração do mineral Xisto em processo de fracking. No caso da produção proposta pelas pesquisas realizadas na Unipampa, partindo do método da gaseificação, é possível o fornecimento de gás de ótima qualidade em um processo de exploração e produção eficientes e ambientalmente responsáveis.
Acerca dos resíduos, a pesquisadora afirmou que são bem menores os níveis de emissão do que se pratica na atualidade e há possibilidade real de se alcançar emissão zero até o prazo de 2050. Itens como o alcatrão e as cinzas obtidas no final do processo também podem ser utilizados como matéria prima em outras cadeias industriais, portanto deixando de ser considerados resíduos e passando a ser considerados coprodutos.
O Plano de Transição Energética Justa proposto já foi apresentado ao Governo Federal nos ministérios da Ciência Tecnologia e Inovação e também Minas e Energia. A ideia é obter recursos necessários na ordem de R$ 10 milhões para implementar o laboratório de forma integral e pouco mais de R$ 2,1 milhões para complementação dos recursos humanos dedicados ao LEC.
Detalhes do plano de transição
O planejamento prevê 4 fases de 2023 até 2050. “Numa primeira fase, a qual já temos resultados mais que suficientes para começar a implementação, a ideia é aproveitar a estrutura elétrica existente na região, fazendo um processo combinado com a gaseificação, promovendo a geração de energia elétrica utilizando turbinas a gás, não mais através da queima de carvão, mas através do syngas, onde 1/3 ainda permaneceria no sistema convencional”, explica Ana Rosa, lembrando que isso é o que já é praticado no mundo todo, principalmente no Japão e nos Estados Unidos, com muita eficiência. “Nessa primeira fase fazemos esse aproveitamento da infraestrutura já existente em um processo mais eficiente energeticamente, com uma redução maior da emissão de gases de efeito estufa, sendo que o que sobra fica mais concentrado, portanto, mais simples de armazenar”.
Numa segunda fase já será possível fazer a gaseificação do carvão com vistas a produção do gás natural sintético. “Sabemos que o Brasil é dependente de Gás Natural importado da Bolívia e Argentina, nós conseguimos com os resultados que já temos, muito expressivos e alcançados até com certa facilidade, produzir GNS de gaseificação do nosso carvão nacional, conseguimos um gás bastante enriquecido com hidrogênio e metano nas condições que estamos estudando atualmente”, aponta.
“Na terceira fase nós começamos já com a co-gaseificação, ou seja, a misturar o carvão à biomassa, de preferência uma biomassa regional já com foco na produção de fertilizantes que é outro produto que o Brasil é dependente de importação”, afirma. “Numa última fase ficaríamos com a gaseificação somente da biomassa, com a produção de energia elétrica, de GNS e de fertilizantes sem a utilização do carvão, somente com a biomassa”, conclui a pesquisadora, ressaltando que até o momento a equipe de professores, técnicos e alunos vinculados à Unipampa já possuem um portfólio de resultados documentados em mais de 100 trabalhos apresentados em eventos ou publicados em revistas científicas.
“A transição energética não pode ser feita de um dia para o outro, pelo menos para ser justa, inclusiva e sustentável. A universidade vem cumprindo o seu papel, que é através da educação mudar vidas e através da ciência e tecnologia mudar cenários. A nossa região está precisando de uma mudança de cenário atualmente e a universidade está preparada para isso”, conclui a professora Ana Rosa.
________________________
(*) Ana Rosa Muniz possui graduação em Engenharia Química pela EEL-USP, mestrado em Engenharia Química pela UNICAMP e doutorado em Engenharia Química pela UFSC. Atualmente é professora associada Unipampa e participa do Grupo de Pesquisa em Engenharia de Processos em Sistemas Particulados e Grupo de Pesquisa em Energia e Carboquímica. Atua na área de Engenharia Química, com ênfase em processos térmicos de conversão (gaseificação e pirólise), carboquímica e aproveitamento e tratamento de resíduos industriais.